“Nossa filha trouxe esperança para o mundo LGBTQIA+. Estamos felizes e somos exemplo de que todos podem construir a sua própria família”
Isabella Victória Martins da Silva veio ao mundo nas primeiras horas da madrugada desta terça-feira (6/04). Primogênita do casal transexual Rodrigo Bryan da Silva, 33, e Ellen Carine Martins da Silva, 25, ela nasceu na maternidade Maria Barbosa do Hospital Universitário Clemente de Faria (HUCF), vinculado à Unimontes.
O que chama a atenção neste parto é o fato de ser a primeira Declaração de Nascido Vivo (DNV) de filha de casal transexual do Norte de Minas. De acordo com o casal, os campos nome da mãe e correlatos foram preenchidos com as informações da mãe afetiva e não biológica.
“A bolsa rompeu, mas não tive contrações suficientes. Então, a equipe médica decidiu realizar o parto induzido assistido. Eles me deixaram à vontade para escolher a posição. No tempo certo, minha filha veio ao mundo. Estou muito feliz, principalmente, porque a DVN respeitará a identidade de gênero”, ponderou Rodrigo.
Já Ellen Carine conta que se sente bastante realizada e feliz, e que a surpresa maior não foi a filha ter antecipado o nascimento em uma semana (estava previsto para o dia 12), mas a forma como foram recebidos e tratados no HUCF.
“Estamos encantados com o respeito e dignidade com que fomos recebidos e tratados no hospital. Profissionais preparados para nos atender e nos deixar à vontade. O HUCF fez tudo para nos ajudar. Estamos abrindo portas para os próximos casais trans”, disse ela, afirmando acreditar num futuro no qual a filha encontre pessoas tão preparadas quanto elas encontraram no HUCF cujo atendimento observou respeito e dignidade.
“Temos esperança no futuro. Minha filha trouxe esperança para o mundo LGBTQIA+. Hoje, qualquer um de nós pode construir sua própria família. Assim que possível, Isabella terá outro irmãozinho”, revelou.
A servidora e socióloga da maternidade, Theresa Raquel Bethônico Corrêa Martinez explica que o relatório da DVN tem a finalidade de garantir e justificar a decisão do HUCF quanto ao preenchimento das informações contidas na declaração.
“Trata-se de um casal transexual em que o gestante é o Rodrigo Bryan da Silva. Procuraram nossa maternidade em outubro de 2020 com objetivo de conhecer nossa estrutura física e a equipe, considerando a possibilidade de realizar o parto conosco. Dentre as várias demandas e dúvidas trazidas pelo casal, além daquelas já rotineiras em relação a pais de primeira viagem, uma delas era o desejo de que no registro de nascimento da filha fosse respeitado o preenchimento do campo nome da mãe e nome do pai de acordo com as informações afetivas em detrimento das biológicas. Isso porque, entendiam que, se não fosse assim, no registro de nascimento da criança o Rodrigo seria a mãe e a Ellen o pai, em desarmonia com a condição social e afetiva em relação à filha”, esclareceu Martinez.
DECISÃO DO HUCF
Considerando se tratar de uma situação atípica para a rotina do hospital, em que as decisões poderiam implicar futuros questionamentos, sobretudo no que tange ao processo de auditoria e faturamento do referido prontuário, a maternidade do HUCF realizou consulta à Procuradoria da Unimontes. Isso porque todos os documentos precisam estar em consonância com as informações descritas na internação, que no caso em tela seriam do Rodrigo.
A Procuradoria esclarece que os documentos médicos, como eventual DNV, devem ser preenchidos em consonância com as informações do prontuário médico e segundo as normas da Medicina, retratando o ato médico; assim, deve-se informar quem foi o (a) gestante, independentemente do sexo do (a) genitor e que a eventual relação dos genitores com o Oficial do Registro Civil extrapola as competências da Unimontes.
A socióloga da maternidade entrou em contato com o Cartório de Registro Civil de Montes Claros, e a serventia informou que o registro da filha do casal seria realizado de acordo com a ordem das informações prestadas pelo Hospital na DNV. “Ao nosso ver, a depender da forma como fossem preenchidas, tais informações impactariam de forma definitiva na vida da família. Entendemos que a assistência a eles ensejaria uma atenção mais específica de nossa parte quanto ao tratamento e registro das informações exigidas durante o período de internação”, afirma a socióloga Theresa Raquel Bethônico.
Nas reuniões que antecederam ao parto, o casal expôs o desejo de ver na DNV os nomes nos campos devidos, respectivamente de mãe e pai, independentemente das questões biológicas. Disseram que se sentiriam discriminados caso fosse de forma diferente, e o quanto esses paradigmas, muitas vezes burocráticos, deflagram o preconceito social. Segundo eles, “os papéis não estão prontos para atender nossas necessidades reais, assim como muitas vezes o mundo e a sociedade também não está, já que para nós a definição de pai e mãe se diverge do que é comumente aceito” (sic).
A Constituição assegura o princípio da igualdade a todos os brasileiros de forma indistinta. Para os casos de pessoas trans, o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) permite a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN), podendo tal mudança ser feita pela via administrativa, facilitando o acesso dessas pessoas aos direitos e garantias fundamentais.
“Entendemos que negar ou dificultar aos pais esse direito viola o princípio da dignidade da pessoa humana, condição sine qua non de exercício da maternidade e paternidade enquanto entidade familiar. Os efeitos da negativa ou entrave no reconhecimento imediato da maternidade e paternidade do casal afetaria a dignidade da pessoa humana”, finaliza a socióloga