Uma criança de Minas Gerais foi o primeiro caso diagnosticado no Brasil com a síndrome de Jalili. A doença é incomum, com pouco mais de 100 registros em todo mundo. Provocada pela mutação de um gene, que é responsável pelo transporte intracelular do elemento magnésio, caracteriza-se clinicamente pela má formação do esmalte dos dentes (amelogênese imperfeita) e, ao mesmo tempo, degeneração da retina ocular (distrofia de cones e bastonetes).
A pessoa convive com a sensibilidade aguda à luminosidade e deficiência visual – que evolui para a perda da visão. A incidência dos casos é quase absoluta em famílias com filhos gerados a partir de casamentos consanguíneos.
A autora do estudo foi a professora Célia Márcia Fernandes Maia, a partir de pesquisas desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). A dissertação de mestrado da autora resultou no artigo científico “Report of Two Unrelated Families with Jalili Syndrome and a Novel Nonsense Heterozygous Mutation in CNNM4 Gene”, publicado recentemente na revista científica European Journal of Medical Genetics.
MAIS DOIS CASOS
Durante a pesquisa foram descobertos mais dois casos da síndrome de Jalili no Brasil. Uma criança de seis anos e o seu pai, que residem no interior de São Paulo, têm a doença, mas, mesmo com a alteração de gene, o adulto não desenvolveu um dos principais sinais da síndrome, a amelogênese imperfeita. “Trata-se de um dos primeiros casos descritos que foge das conseqüências comuns ao portador da síndrome”, acrescenta Célia.
Os casos em Minas e São Paulo são também os primeiros registros da doença na América do Sul. Até então, na América Latina, havia somente um caso descrito – na Guatemala. A síndrome foi descoberta em 1988, no Oriente Médio – Faixa de Gaza -, pelo oftalmologista egípcio, Ismail K. Jalili.
COMO FOI A PESQUISA
Célia Maia é odontopediatra e especialista em odontologia para pacientes com necessidades especiais pela Universidade de São Paulo. Trabalha pela Secretaria Municipal de Saúde de Montes Claros, no Centro de Referência em Assistência à Saúde do Idoso (CRASI), do Hospital Universitário Clemente de Faria (HUCF/Unimontes). Ela revela que teve o interesse de se aprofundar no estudo da síndrome de Jalili a partir do atendimento ambulatorial. “Na avaliação desta paciente de oito anos percebi o comprometimento na formação do esmalte nos dentes. É um quadro que chama a atenção porque as alterações nos tecidos dentais têm indicativos de associação com outras alterações sistêmicas”.
O fato de a criança estar na consulta de óculos escuros por causa da fotossensibilidade, segundo a professora, chamou-lhe a atenção. “Em outro momento, a mãe confirmou que a alteração de visão era de nascença. A partir daí, passei a consultar outros especialistas para saber se as duas alterações poderiam estar associadas”.
Além da participação de professores do Departamento de Odontologia da Unimontes e do Programa de Pós-graduação em Ciências da Saúde, o estudo contou com a colaboração do oftalmologista Luciano Sólia Nasser (doutor em Ciências da Saúde pela Unimontes). Em função da complexidade do estudo e das análises laboratoriais realizadas, o trabalho teve ainda a participação da área de genética odontológica da Faculdade de Odontologia de Piracicaba/UNICAMP e da Genética Clínica da Faculdade de Ciências Médicas – também da UNICAMP.
“A partir das análises genéticas e das inúmeras avaliações oftalmológicas, foi possível identificar a mutação no gene CNNM4, que está associado à síndrome e que causa a alteração no transporte de magnésio dentro do organismo. Segundo elemento mais presente no corpo humano, o magnésio faz parte de vários tecidos e é essencial na transformação do estímulo luminoso em elétrico na retina, formando a imagem, além de ser um dos componentes fundamentais na formação do esmalte dentário”.
CONSEQUÊNCIA
Embora os estudos sejam iniciais, os pesquisadores consideram a descoberta como um importante passo na área de saúde, a começar pelo incentivo ao trabalho multiprofissional entre oftalmologistas e odontólogos na investigação mais precisa quando houver casos de distrofia da retina ou de má formação do esmalte dentário.
“Inicialmente, a alteração visual da paciente de Minas Gerais foi diagnosticada por um oftalmologista como amaurose congênita de Leber, uma doença hereditária da retina que também provoca a perda progressiva da visão, mas sem associação com alteração no esmalte dos dentes. No entanto, como naquele momento não foi realizado a avaliação bucal da paciente, o diagnóstico foi modificado, não indicando síndrome de Jalili”, explica a professora Célia Fernandes Maia.
O estudo teve a participação dos pesquisadores Vera Lúcia Gil da Silva Lopes, Elaine Lustosa Mendes e Priscila Hae Hyun Rim, da área de Genética Clínica da Faculdade de Ciências Médicas (UNICAMP); Renato Assis Machado e Ricardo Della Coletta, da área de Patologia Oral e Genética Odontológica da Faculdade de Odontologia (UNICAMP) e dos professores do Departamento de Odontologia: Daniella Reis Barbosa Martelli e Verônica Oliveira Dias.
“Esta pesquisa destaca o alcance do trabalho multiprofissional para o diagnóstico e tratamento de uma doença incomum e, ao mesmo tempo, ressalta a importância de estudos interdisciplinares na área da saúde, com contribuição significativa para diagnósticos mais precisos”, destaca o orientador do estudo, o professor Hercílio Martelli Júnior. A pesquisa teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).